HISTÓRIA REGIONAL

COLUNISTA - Francisco JosE dos Santos Braga


Maurício ou os paulistas em São João D'el-Rei

INTRODUÇÃO, por Francisco José dos Santos Braga



Os textos reproduzidos nos itens abaixo referem-se à cidade de São João del-Rei extraídos da obra de Bernardo Guimarães e fazem parte de uma série iniciada com a publicação neste blog em 16/06/2016, de texto (cujo título era o nome dessa cidade) de autoria do Conde Afonso Celso ¹, que aqui residiu na década de 1880. Em seguida, também neste blog, foram publicadas "Impressões de São João del-Rei" em 1962, por Paulo Kruger Corrêa Mourão  ². Também recuperei textos valiosos sobre a Casa da Pedra (chamada de Gruta de Irabussú por Bernardo Guimarães), localizada entre São João del-Rei e Tiradentes, inclusive a sua primeira descrição e mapeamento científicos. ³ Com mais esta iniciativa, redobro meu interesse de se colocarem em destaque as diferentes óticas de grandes escritores  nacionais sobre essa cidade.


Neste post serão oferecidos textos de Bernardo Guimarães, extraídos de seu romance histórico "Maurício ou os Paulistas em São João d'El-Rei", comentados por mim.


Antes, porém, de apresentar esses textos de Bernardo Guimarães que ressaltam aspectos da cidade de São João del-Rei, gostaria de informar que há um texto de Basílio de Magalhães intitulado "A vida tradicional na população rural" que trata da reflexão de dois romancistas mineiros sobre a Guerra dos Emboabas. No exame de sua matéria, o intelectual Basílio submete três romances históricos brasileiros à sua análise, escritos por dois autores mineiros, Bernardo Guimarães e Júlio Ribeiro. No caso do primeiro autor, debruça-se sobre dois romances: "Maurício ou os Paulistas em São João d'El-Rei" e "O Bandido do rio das Mortes". No caso de Júlio Ribeiro, examina o romance "Padre Belchior de Pontes".

Como Basílio é muito mais prolixo na análise literária de "Maurício" do que na dos outros dois romances e tendo em vista que os textos, que serão apresentados nos itens abaixo desta matéria, foram extraídos desse romance, nesta Introdução vou apresentar e comentar os principais pontos levantados por Basílio em sua análise de "Maurício", para conhecimento prévio do leitor antes de aventurarmo-nos diretamente nos textos.


O crítico literário Basílio de Magalhães segue na trilha do autor da Apresentação (item II) que se identifica pelas iniciais L.C., ao analisar "O Bandido do rio das Mortes" como uma sequência de "Maurício". Essa constatação inicial de Basílio abre a sua apreciação intitulada "A vida tradicional na população rural", que ainda traz a lume outro romance aparentado com esses dois citados: "Padre Belchior de Pontes" de Júlio Ribeiro, que, segundo Basílio, utiliza o mesmo enredo dos dois romances de Bernardo Guimarães. Logo, o tema de Basílio é mais abrangente no sentido de abarcar um gênero, o que torna a crítica menos seletiva porque enfoca obras de mais de um autor.  Vamos então pinçar alguns trechos desse trabalho que têm a ver com o objeto de nosso estudo. 
"Maurício é romance de costumes, versando sobre o episódio da guerra dos emboabas, que Júlio Ribeiro também aproveitou para o seu "Padre Belchior de Pontes". Foi publicado em dois volumes, anunciando o autor, nas últimas linhas do capítulo final, que a história se remataria em novo livro, "O Bandido do rio das Mortes". 
Nestes trabalhos de Bernardo Guimarães é que melhor se observa a junção das duas tendências — a vida tradicional nas populações rurais 
(Maurício) é a obra de mais fôlego de Bernardo Guimarães e, no gênero, a mais bela. Embora haja ali pouca psicologia e excessiva acumulação de personagens, cujas feições psíquicas são, contudo, bem desenhadas, o romance empolga o leitor, quer pelas cenas da natureza, quer pela movimentação da vida humana."
Portanto, Basílio não esconde sua admiração por Bernardo Guimarães no seu romance "Maurício", ressaltando-lhe as qualidades. Agora, Basílio envereda pela História, sua especialidade:  
"Se, no ponto de vista rigorosamente histórico, há nele erros (por exemplo, dá Arthur de Sá e Menezes como nomeado governador da capitania de Minas em 1700, quando na verdade é que o foi da Repartição do Sul, desde 1697), palpita a verdade nas descrições de São João del Rey e seus arredores (que, que ali nasci, posso fazer com segurança essa afirmação), particularmente na da nossa calcárea "Casa da Pedra", por ele chamada de "Gruta de Irabussú" (cap. XII). Poucos escritores seriam capazes de traçar melhor que o mineiro as páginas referentes à caçada, que formam os capítulos VI, VII, VIII e IX." 
E novamente:  
"Sei que Bernardo Guimarães, para poder elaborar 'Maurício' e 'O Bandido do rio das Mortes', percorreu meticulosamente todo o cenário, São João del Rey, São José del Rey (hoje Tiradentes) e região." 
Também Basílio não deixa de expor seus conhecimentos etnográficos:  
"(Maurício) é uma composição em que, sobre o duplo pedestal da paixão de Maurício por Leonor, filha do capitão-mór, também requestada pelo fidalgo Fernando, e do insopitável ódio entre os bandeirantes, conquistadores do hinterland aurífero, e os reinóes, se agrupam e se agitam, em contornos bem gizados, todos os elementos formadores de nossa nacionalidade, o português, o índio e o negro, com os seus subprodutos étnicos."
Na análise de "Maurício", igualmente Basílio faz uso de seus conhecimentos no campo do folclore:  
"No seu alentado romance, Bernardo Guimarães enxertou algumas superstições religiosas, que vieram de Portugal para o Brasil (...) As comparações são tiradas da nossa fauna. (...)  Além de prolóquios lusitanos, a que deu preferência a linguagem vulgar, 'plantar verde para colher maduro',  'tão boa é a corda, como a caçamba', encontram-se ali expressões populares, 'lascar guascadas', (...)."
Também discorre sobre as semelhanças encontradas na obra dos dois mineiros Bernardo Guimarães e Júlio Ribeiro:  
"É irrecusável, nos lineamentos gerais e em certas particularidades, a semelhança do 'Maurício' de Bernardo Guimarães com 'O padre Belchior de Pontes', de Júlio Ribeiro. O episódio fundamental é o mesmo — o da guerra dos emboabas — e há cenas evidentemente comuns às duas obras, como a caçada, a da luta com a onça e até a descrição da gruta de calcárea, além de que em ambas se encontra a figura de Amador Bueno, relembrando ainda o Antonio Francisco e a Guiomar da segunda as personagens de Maurício e Leonor."
Dadas as informações que Basílio fornece sobre a simultaneidade com que os romances "Maurício" e "O padre Belchior de Pontes" saíram do prelo, para ele não há que pensar em plágio por parte de nenhum dos dois autores. Sobre o romance de Júlio Ribeiro, assim se expressou:  
"Incumbiu-se desinteressadamente da publicação de toda aquela obra do pujante escritor sabarense e cantor de 'Estrelas Errantes' o dr. Francisco Quirino dos Santos, jornalista republicano, saindo ela dos prelos da 'Gazeta de Campinas' em dois volumes, o primeiro em 1876 e o segundo em 1877."
Já a respeito de "Maurício", informa:  
"Os originais de 'Maurício' devem ter sido entregues à Casa Garnier em meados de 1876 pelo menos, porque esse romance, em dois tomos de 340 e 294 páginas, respectivamente, foi impresso no Havre, e, como os jornais do Rio de Janeiro só se ocupavam dele em começo de 1877, acredito que foi nessa época que os editores puseram no mercado. É lícito, portanto, presumir que os dois mineiros não se imitaram, nem se influenciaram, mas convergiram fortuitamente e simultaneamente o espírito para a explanação do mesmo assunto histórico e ali se congenializaram em quase forçados aspectos, oriundos dos homens que evocaram e  do meio que descreveram." 
Por fim, além de ter ressaltado os principais aspectos positivos de "Maurício", Basílio ainda o defende, nesse caso específico, da crítica acerba e da opinião infundada de José Veríssimo: 
"José Veríssimo ("Estudos de Literatura Brasileira"), que, divergindo da opinião generalizada, considera Bernardo Guimarães melhor poeta do que romancista, diz que o 'Maurício' é uma 'obra de decadência'. Como, porém, o famoso crítico confessa que, ao reler aquele romance, não passou dos primeiros capítulos, cumpre não se tenha em conta de firme e valioso o seu infundamentado laudo."

Fontehttps://sites.google.com/site/sitedobg/Home/romances-contos/mauricio-ou-os-paulistas-em-sao-joao-del-rei 






II.  APRESENTAÇÃO DO ROMANCE "MAURÍCIO OU OS PAULISTAS EM SÃO JOÃO D'EL-REI"

                                                    APRESENTAÇÃO
 


Em 1881, Dom Pedro II visitou Ouro Preto. Na ocasião teria solicitado a Bernardo Guimarães que escrevesse a História de Minas Gerais! Do projeto prometido ao Imperador, nada ficou entre seus papéis... 
Considerando-se que, desde a publicação de o Ermitão de Muquém, o escritor foi quase que somente romancista, com penhor para a narrativa histórica, tal fato nos faz crer que Maurício, e sua sequência O Bandido do Rio das Mortes, fizesse parte de um projeto maior, com o intuito de visitar a história de Minas Gerais sob a forma de ficção.

Maurício nos apresenta nas primeiras páginas os distúrbios que levariam à Guerra dos Emboabas, quando São João D’el Rei ainda se seguia como localidade de novas lavras de ouro e diamantes. Já, aí, temos o conflito instaurado, mas, de maneira localizada, e, sem relações com os mesmos problemas enfrentados em Ouro Preto. Narra-nos um primeiro levante, menos provocado pela população, e mais incitado por D. Fernando, em busca do poder e do amor de sua prima.

O Bandido do Rio das Mortes, sua sequência, já traz o conflito atingindo maior amplitude, e envolvendo personagens da história de Minas Gerais. Encerra-se, no entanto, dois anos antes do ápice da Guerra dos Emboabas, que se daria dois anos depois, quando, depois da batalha sangrenta, o rio que passa por São João D’el Rei, receberia o nome alusivo a mais importante batalha.

A narrativa inacabada subitamente pela morte de Bernardo Guimarães nos faz supor que existiria um novo romance em projeto, que trataria do desfecho do episódio.

A narrativa lenta, com descrições longas da ambientação, às alusões ao contexto mineiro da época e o cuidado em recriar uma povoação em constante atrito, nos aponta para uma sequência de romances históricos, iniciada na obra que aqui apresentamos.

O leitor intuitivamente perceberá um Bernardo Guimarães menos leve, pouco irônico e quase excessivamente descritivo. Se pode ter alguma expectativa frustrada ao final do volume, não deixará, no entanto, de reconhecer no alentado volume, um escritor de maior fôlego e, consequentemente, de um apuro narrativo que desmente muitas críticas negativas à sua obra.

Caso houvesse concluído o seu projeto, certamente teríamos uma acurada formal de um momento decisivo, não só para a história de Minas Gerais, como da história do Brasil.

L. C.





III.  CAPÍTULO I  DE "MAURÍCIO OU OS PAULISTAS EM SÃO JOÃO D'EL-REI" INTITULADO "S.  JOÃO D'EL-REI"

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A  MINA  MISTERIOSA

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Capítulo I:  S. João d'El-Rei 




É bem linda a cidade de S. João d’ El-Rei, — essa formosa odalisca, que abre as portas das magníficas regiões do Sul de Minas.
Se a não conheces, leitor, pergunta àqueles que a têm visitado, se não ficaram encantados com aquele aspecto faceiro e risonho, que sempre a reveste, e que dá-lhe a aparência de noiva gentil, que traz sempre na fronte a grinalda da festa nupcial, e nos lábios o sorriso da alegria e do amor.
Reclinada pela falda de um serrote de pouca elevação, chamada a Serra do Lenheiro, cujo dorso denegrido, árido e esburacado contrasta singularmente com a perspectiva risonha e vicejante da planície, parece travessa e risonha pastorinha, que, pousada sobre a pelúcia verde dos prados, com os braços abertos e o sorriso nos lábios, como que está dizendo ao viandante fatigado:
— Vem a meu seio gozar do repouso e do prazer.
O ambiente tépido e voluptuoso, que a envolve, agitado de brandas virações, a bafeja constantemente com os aromas da flor de laranjeira, da rosa, do jasmim, do jambo, da manjerona e das fragrâncias que se exalam de seus inúmeros jardins e pomares.
Esses pomares e jardins, que se entreveram com as casas como arabescos de esmeralda, estão sempre toucados de flores e frutos, porque ali só se conhecem duas estações — a primavera e outono, — que ali reinam todo o ano conjuntamente na mais perfeita e inalterável harmonia.
É a terra dos frutos e das flores, dos perfumes e das canções, dos risos e das festas, da beleza e do amor. É a Nápoles de Minas.
Um ribeiro , que desce das vizinhas serras e que atravessa pelo meio passando por baixo de duas lindas pontes de pedra, a embala com seus murmúrios.

Mas infelizmente não se poderia dizer, sem faltar à verdade, que ela banha os pés e mira-se orgulhosa no espelho transparente dessas águas.
As águas turvas desse ribeiro, que desce da Serra do Lenheiro coberta de uma argila negra revolvida pelos trabalhos de mineração, formam um espelho por demais embaçado, e só servem para enxovalhar de lama negra os mimosos pés da formosa odalisca do Sul de Minas.
Todavia tal senão nem por isso desfigura muito a linda cidade. Para disfarçá-lo, os habitantes têm guarnecido parte das margens de um belo cais sobrepujado de arcadas, trabalho que a ser continuado em ambas as margens muito realçará o aspecto interior da feiticeira cidade.
1
Arcadas no cais da esquerda, que não sobreviveram.
             Crédito: site Pátria Mineira, de São João del-Rei.
Deitada ao longo da falda da serra amparam-lhe brandamente a cabeça, pelo lado do sul, verdes e boleadas colinas, enquanto os pés estiram-se espreguiçando pela planura, formando o pitoresco arrabalde de Matosinho , cujas casas alvejam afofadas em ondas dos mais frondentes e viçosos pomares.
Seguem-se a norte e a leste as extensas lizerias, no fundo das quais rola as ondas rápidas o caudaloso Rio das Mortes, que em distância de cerca de meia légua se encurva em torno da cidade como serpente colossal posta em guarda aos pés do escabelo, em que repousa a fada mimosa dos países do ouro e do diamante.
Tudo nessa linda cidadezinha hoje parece respirar paz e alegria, prazeres e amor. Entretanto, em eras mais remotas por aí restrugiram ecos de morte e de vingança. Essa terra hoje tão risonha e tranqüila já foi teatro do embate e desafogo de ferozes e sanguinárias paixões; já fumegou o sangue de espantosas carnificinas por aí, aonde agora só respiram auras embalsamadas dos perfumes dos laranjais, das mangueiras e dos jambeiros em flor.
Como se sabe, à heróica e nobre cidade de Amador Bueno, à terra dos Tibiriçás, cabe principalmente a glória de ter devassado, explorado, e em grande parte povoado as montanhosas e auríferas regiões do centro de Minas. Ao passo que pelo lado de leste aventureiros portugueses se entranhavam pelos sertões e descobriam os terrenos diamantinos das margens do Jequitinhonha e Abaeté, e penetravam mesmo até o Ouro Preto, os bravos e infatigáveis conterrâneos de Amador pelo lado do sul faziam as mesmas tentativas, organizando expedições, a que chamavam bandeiras. Estas expedições tinham duplo fim, que eram por sua natureza conexos, a descoberta de novas regiões, principalmente de terrenos auríferos, e a submissão das tribos indígenas.

É admirável e quase inconcebível a audácia, a perseverança e a incansável atividade daqueles inquietos aventureiros, que através de mil perigos e fadigas insanas exploram e atravessam em todos os sentidos, durante quase um século, toda a vasta extensão da América portuguesa, nem sempre bem sucedidos, porém por vezes levando a cabo as mais incríveis e arrojadas empresas.
Uns arrojam-se através da província de Goiás e, varando inóspitos e medonhos desertos, vão submeter as tribos selvagens das margens do Tocantins e travam luta com o governador do Pará, que lhes queria tolher o passo.
Outros entregam-se às águas do Paraná em troncos desmesurados transformados em canoas e, subindo pelos afluentes do grande rio, penetram no coração do Mato Grosso, onde descobrem novas riquezas minerais e lançam os alicerces de futuras povoações.
Outros ainda mais audaciosos penetram nos domínios espanhóis, descem às reduções do Paraguai e delas expelem os jesuítas, que pretendiam suprimir o tráfico de escravos indígenas, com que aqueles aventureiros tanto se enriqueciam.
Enfim não há província nenhuma do interior, que não guarde as pegadas ainda mal apagadas daqueles audaciosos exploradores e, não conserve em suas tradições uma vaga lembrança de seus hercúleos cometimentos.
Hoje mesmo, quem viaja por esses sertões do interior ainda tão broncos e inóspitos fica pasmo imaginando as dificuldades imensas que naquela época esses homens teriam a vencer, os azares e perigos de toda a sorte, que a cada momento teriam de afrontar. 
Mas esse núcleo de homens valentes e resolutos, que ocupava o vale de Piratininga, forte pela atividade e pujança de ânimo, era fraco pelo número para tão vastas empresas e, não podendo manter-se por muito tempo na larga extensão dos países que exploravam, deviam confinar-se nos limites de sua capitania, que já por si só oferecia espaço imenso e alimento ilimitado à sua atividade e ambição.

A história dos primeiros tempos coloniais, incompleta e cheia de lacunas, bem pouco nos satisfaz no que diz a respeito das primeiras explorações e descobertas. 
Não ficou vestígio, nem documento algum de muitas coisas, que se passaram nessa época de atividade e agitação febril, desse viver inquieto e aventuroso dos primeiros íncolas do Brasil, abrasados na sede do ouro e, procurando-o por toda a parte da América com o mesmo açodamento com que o povo hebreu morrendo à sede, procurava uma gota de água pelos tórridos areais do país de Horeb. Pouco se sabe das contínuas lutas travadas já entre si mesmos, já com os filhos da metrópole, já com as hordas indígenas, as feras e a natureza selvática da terra americana.

A sombra e o silêncio das florestas adormeceram para sempre em seu seio o eco de muitos combates mortíferos; a terra bebeu muito sangue, que não transuda mais, e pulverizou muita ossada de vítimas de horrorosas carnificinas.
O cronista das eras, que foram, mal pode colher aqui e ali nos lábios dos velhos ou de algumas escassas notícias escritas uma lenda obscura, um conto mutilado, em que todavia sempre ressumbra um pouco de espírito daqueles homens tão singulares, daquela época tão curiosa.
S. João d’ El Rei, como todos os terrenos auríferos do centro de Minas, deve sua descoberta e exploração aos paulistas. Por sua posição geográfica, servindo como de porta ao sul às regiões auríferas, devia ser uma das primeiras, senão a primeira, com que depararam aqueles denodados aventureiros em sua marcha de sul para norte.
Ali foi o principal teatro do antagonismo violento, da luta enraivada, que nos primeiros anos do século passado se travou entre paulistas e forasteiros, luta que terminou pelo horroroso e traiçoeiro morticínio dos paulistas, ordenado por Bento do Amaral Coutinho, agente do famoso e opulento português Manuel Nunes Viana.
Esse atentado tão tristemente célebre, que deu ao rio, que passa por perto de S. João, o sinistro nome de Rio das Mortes, teve lugar em Janeiro de 1709. As rixas, porém, e desavenças, que por vezes se tornaram lutas sanguinosas, já vinham desde o ano de 1700, em que Artur de Sá de Menezes, nomeado governador da Capitania, chegou às Minas, trazendo consigo bandos de aventureiros da metrópole e de diferentes capitanias.
Este fato excitou o ciúme dos paulistas, que, na qualidade de primeiros descobridores das minas, se consideravam como tendo direito exclusivo de explorá-las, e começaram a votar ódio mortal àqueles aventureiros, que pretendiam usurpar seus tesouros, e, principalmente aos portugueses, que apelidavam emboabas.
É nessa época, — dois anos pouco mais ou menos antes da terrível carnificina, — que se passam os fatos, cuja narrativa agora empreendemos.



IV.  CAPÍTULO II  DE "MAURÍCIO OU PAULISTAS EM SÃO JOÃO D'EL-REI" INTITULADO "OS MINEIROS"



Capítulo II:  Os mineiros



A nascente povoação das eras remotas, a que nos reportamos, estava ainda mui longe de ser a S. João de hoje. Naquele tôsco e selvático embrião ninguém poderia ainda adivinhar a risonha e faceira cidade dos nossos dias.
O vale, por onde passa o ribeiro e onde se acha assentada a parte principal da cidade, tinha o aspecto de uma roça derribada de fresco, e ao longo das margens se viam dispersas as pequenas arranchações dos faiscadores, — esses respingadores das minas, — que com suas bateias apuravam à beira do córrego as fagulhas de ouro, que escapavam às lavras dos opulentos mineiros.
Pela encosta das colinas viam-se disseminadas algumas casas novas de melhor aparência e outras ainda em construção. 
O trabalho ativo e incessante transformava de dia em dia o aspecto selvático daquele solo virgem.  Aqui retinia a alavanca e o almocafre do mineiro em socavões profundos, ou em lavras de talha aberta. Ali troava compassado sobre a bigorna o martelo do ferreiro. Além gemiam grossas madeiras aos golpes do ferro do carpinteiro. Mais longe o machado do derrubador abatia uma floresta para dar lugar a plantações, fábricas e engenhos.
As ruínas da natureza bruta, — troncos prostrados, rochedos aluídos, terras retalhadas, cômoros desmontados, — avultavam ainda sobre as obras e construções da indústria humana.
Era a luta gigantesca, que então começava a se travar ali, como em toda a face da América, da indústria com a natureza bruta, da civilização com a barbaria.
Oxalá, que a vitória tivesse sido completa, e que os civilizadores desta incomparável terra do Brasil não tivessem também trazido em suas leis, hábitos e costumes tantos elementos de barbaria, de cujas consequências até hoje nos ressentimos!
O Rio das Mortes ainda não tinha esse fúnebre nome, e não se sabe qual lhe davam os naturais do país; pelo menos eu não sei, pois nunca o li, nem ouvi a ninguém. Portanto lhe darei o nome, por que hoje é conhecido.
Um pouco retirado do núcleo principal da povoação, para o lado de leste, em um suave lançante, que dominava os vargedos, onde hoje é o bairro de Matosinho, notava-se um vasto edifício inteiramente novo, e que parecia ter recebido naquele mesmo dia os últimos toques das mãos dos operários.
Era uma espaçosa casa de madeira, solidamente construída, vasta e cômoda, do tipo da maior parte das vivendas dos abastados fazendeiros de Minas. Tinha um pavimento, elevado cerca de dous metros acima do solo. A um lado corria em toda a extensão do edifício larga varanda guarnecida de um peitoril com balaústres de jacarandá torneado.
Por uma escadaria de pedra, de dous lances, que desciam à direita e à esquerda, se baixava da varanda para um vasto páteo quadrado, comunicando com a rua, ou antes com a estrada, que lhe passava em frente, por um largo portão formado de dous sólidos batentes de cedro, firmados em duas truculentas colunas de cangerana.
Pelos outros dous lados o páteo era circunscrito por uma série de casinholas ou senzalas destinadas aos escravos e camaradas.
Por esse páteo e pelas imediações do edifício viam-se diferentes grupos conversando com animação, e muitos vultos se cruzavam amiudadamente com certa agitação, que dava a entender, que algum acontecimento extraordinário vinha interromper naquele dia o monótono viver dos mineiros do Rio das Mortes. 
Esta multidão, que se agitava em torno do edifício e pelas avenidas da povoação nascente, era um composto de gente de todas as classes e condições, de todas as procedências e de todas as raças.
Eram paulistas e forasteiros de todas as capitanias, portugueses ou emboabas, escravos africanos e indígenas de diferentes tribos. 
Do tom por demais animado, azedo e às vezes rancoroso, que reinava em quase todas as conversações, que mais pareciam rixas, se depreendia a profunda discórdia, que lavrava no seio daquela sociedade formada de elementos tão heterogêneos, o ódio irreconciliável, que dividia aqueles ânimos superexcitados pela sede do ouro.
Era isto em dias de Dezembro de 1707. (...) 




Fontehttp://kk.docdat.com/docs/index-371184.html




V.  COMENTÁRIOS, por Francisco José dos Santos Braga





¹  http://saojoaodel-rei.blogspot.com.br/2016/06/s-joao-del-rei-por-afonso-celso.html

²   http://saojoaodel-rei.blogspot.com.br/2016/07/homenagem-postuma-ao-historiador-fabio.html (item 9) 

³ http://saojoaodel-rei.blogspot.com.br/2016/06/uma-obra-maravilhosa-da-natureza-casa.html

http://saojoaodel-rei.blogspot.com.br/2016/06/descricao-e-primeiro-mapeamento-da-casa.html

⁴ [ALVARENGA, 1973, p. 80] descreve o "ribeiro", hoje conhecido como Córrego do Lenheiro, tributário do Rio das Mortes, da seguinte forma em artigo sobre as "Pontes de Pedra" sobre o famoso "ribeiro": 
"(...) foi uma das causas da atual localização de São João del-Rei; pois subindo seu leito, à procura do ouro, os primeiros habitantes foram se localizando às suas margens e subindo as encostas onde, pela primeira vez, tiravam ouro em seus morros, mesmo à flor da terra.
Divide a cidade em duas partes — Matriz e São Francisco.
Anualmente duas ou três grandes enchentes fazem com que este pequeno córrego se avolume extraordinariamente, ocupando por algum momento todo o espaço entre os cais. As enchentes, felizmente, são rápidas. (...)
1
Córrego do Lenheiro em dia de cheia, no início de 2007, com vista para a 
Ponte da Cadeia. Crédito: Gazeta de São João del-Rei.

Antes, foi chamado Ribeirão e Córrego do Tijuco, donde o nome deste Bairro da cidade.
O seu tributário Rio Acima era chamado das Barreiras e Córrego Seco.
Sobre o Córrego do Lenheiro existe uma lenda (...).
A lenda de Rudá, o deus do amor, é uma das mais lindas e tem sua origem nas terras históricas de São João del-Rei." 

   O nome oficial desse bairro são-joanense é Matosinhos.  [HENRIQUES, 2003, 30] considera o atual Bairro de Matosinhos como o berço da cidade de São João del-Rei: 
"Daí, é possível raciocinar que, tal como o bairro de Matosinhos, o núcleo habitacional da cidade de Tiradentes formou-se antes do centro histórico de São João del Rei, e também como o de Matosinhos, não logrou sucesso dada a debandada dos exploradores dessas últimas regiões citadas para a região do Alto das Mercês e Serra do Lenheiro, em São João del Rei, onde descobriram ouro em grandes quantidades." 
[Idem, 2003, 29]  reforça a sua ideia de o núcleo habitacional de Tiradentes ter-se formado ao mesmo tempo que o de Matosinhos: 
"Naturalmente, o governo português foi reconhecendo as vilas mais ou menos na sequência cronológica de seus descobrimentos. (...)
Tiradentes, com o nome de São José del Rei, em 28/01/1718, apesar do seu povoado ter se iniciado junto com o do bairro de Matosinhos, primeiro com o nome de Arraial de Santo Antônio e depois Arraial Velho do Rio das Mortes, já que a antiga São João del rei se chamava Arraial Novo do Rio das Mortes e depois Arraial de Nossa Senhora do Pilar."
 
[Ibidem, 2003, 42] informa que, apesar da debandada com destino aos morros e serras de São João del Rei, existiu outrora uma mina de ouro no bairro de Matosinhos: 
"O ouro também foi explorado em Matosinhos: houve um dique para trabalhos de sua mineração no Ribeirão da Água Limpa, no local denominado Ouro Preto, na antiga "Fazenda Velha". O negociante inglês John Luccock, que por ali passou em 1818, cita essa mineração. Outro inglês, o pastor anglicano e desenhista Robert Walsh, escreveu [sobre o rompimento desse dique.]
Mais tarde, em 1868, um terceiro inglês, explorador e diplomata, Richard Francis Burton, confirma: "Mais acima está uma ponte quebrada, que data do tempo em que Matozinhos tinha uma mina de ouro florescente. A explosão de um poço (...) acabou com a mineração." 



VI.  REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS




ALVARENGA, Luís de Melo: Pontes de Pedra, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei nº 1, 1973, pp. 75-82.

HENRIQUES, José Cláudio: Bairro de Matosinhos: berço da cidade de São João del Rei, São João del-Rei: UFSJ, 2003, 244 p.

 

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