CARTAS DE UM OUTRO MATOSINHOS
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Isabel Lago
Diretamente de Portugal

Queridos amigos,

A poucos dias da vossa Festa do Espírito Santo e da nossa Romaria do Bom Jesus de Matosinhos, vamos retomar o estudo desta igreja, passando agora para o seu interior.

IGREJA DO BOM JESUS DE MATOZINHOS DE S. ANTÓNIO DE PIRAPETINGA

Quanto à ornamentação, a documentação mostra-se insuficiente no que diz respeito às obras de talha. O retábulo da capela-mor foi contratado, em 1781, com o entalhador José de Meirelles Pinto que alterou seu coroamento por volta de 1795, executando ainda o friso da cimalha e a talha dos óculos da capela-mor. Trata-se de obra de boa qualidade, onde se distingue a leveza da talha rococó sobre uma estruturação concisa e ordenada. São quatro colunas lisas com bases em forma de ânfora invertida, o sacrário movimentado e, coroando o conjunto, uma composição elegante e bem proporcionada.

Os altares laterais foram provavelmente executados na primeira década do século XIX, podendo atribuir-se sua autoria ao entalhador Vicente Fernandes Pinto ou a José Meirelles Pinto, que os teriam confecionado em data anterior a 1808, ano da sua morte. Estes retábulos constituem, em linhas gerais, uma simplificação dos retábulos em estilo rococó, já revelando uma tendência neo-clássica (...).

A realização dos púlpitos também é controvertida, não se encontrando referências sobre sua fatura nos livros da irmandade, supondo-se que teriam sido adquiridos de uma outra capela. Apresentam formas sinuosas e elegantes, com elementos com talha do período joanino.

Mais do que a talha, a pintura faz da capela do Senhor Bom Jesus uma obra evidentemente notável. Destaca-se não somente pela sua qualidade, mas também pela unidade no programa decorativo, conferida pelos forros da nave e capela-mor, pelos quadros da Via-Sacra que enriquecem o conjunto, pelos painéis do coroamento do arco-cruzeiro, em cartelas emolduradas por concheados e flores, e pela pintura do camarim do Bom Jesus localizado atrás da Capela-mor. Nos trabalhos de pintura distingue-se o nome de Francisco Xavier Carneiro, que ali trabalhou de 1806 a 1840, e parece ter empreitado todo o servi ço de pintura da igreja.

A composição do forro da capela-mor obedece ao padrão característico das obras de Francisco Xavier. Sua estruturação é definida pelo medalhão solto no eixo longitudinal da abóbada (...). A cena do medalhão representa a Ascensão do Senhor e, curiosamente, o desenho é excessivamente contido e duro e a figura do Cristo possui anatomia grosseira, o que sugere uma repintura do painel original ou a participação de um pintor menos habilidoso (...).

Na extensa abóbada da nave (...) um medalhão possui moldura exuberante em concheados, enrolamentos e rocalhas, de gosto rococó. A cena central, representando a Santíssima Trindade, com o Pai Eterno e o Filho, mostra novamente as figuras com pouco movimento e anatomicamente imperfeitas, o que pode indicar, tanto a menor habilidade do artista na figuração humana, quanto a participação de aprendizes ou pintores de qualificação inferior na realização do trabalho ou, ainda, repintura.

Além dos trabalhos referidos, cabe mencionar as tábuas com pintura marmorizada colocadas no assoalho do prebitério, possivelmente em substituição das antigas deterioradas, e o forro do átrio, composto em painéis marmorizados com cartela ao centro . Os seis quadros das paredes laterais da capela-mor mostram cenas da Paixão de Cristo e, embora não possuam referência documental específica, apresentam semelhanças com o trabalho dos forros da nave e da capela-mor (...).

Na pintura do camarim do Senhor de Matozinhos, localizado atrás do altar-mor, o desenho das rocalhas e das flores é mais livre e delicado e, nas figuras de anjos e querubins, notam-se traços mais suaves e expressivos. Suas cores foram, em parte, alteradas pela luz direta das janelas próximas, incidente durante mais de um século e meio (...).

No acervo atístico deste Santuário (...) nota-se a boa qualidade das peças que vão desde as grandes e suntuosas imagens do altar-mor, até às " pequenas de palmo" dos nichos dos colaterais (...).

A imagem mais antiga é a do Bom Jesus colocada atrás do altar-mor, da qual não há referência documental. Sua expressividade e movimentação permitem identificá-la como obra ainda ligada ao terceiro quartel do século XVIII

A Irmandade e o Jubileu do Bom Jesus de Matozinhos

À Irmandade competia a organização do Jubileu. Como já se referiu anteriormente, não se sabe exactamente o ano da sua fundação, que foi certamente anterior a 1781. No entanto, parece que apenas solicitaram ao rei a provisão dos seus estatutos cerca de 1792:

Dizem o juiz e mais irmãos da Irmandade do senhor Bom Jesus de Matozinhos, erecta no Arrayal do Bacalhao, freguesia de Guarapiranga, destricto da cidade de Mariana, que elles para governo interno da dita Irmandade fizerão um compromisso junto constante de 16 capítulos, onde se regulão as entradas e modos de dirigir a actual irmandade, pelo que respeita a economia mais ainda pelo que pertence ao culto divino e bem espiritual tanto dos vivos como dos mortos porque por firmeza e validade deste compromisso necessitão de provizão confirmatória de V. Magestade. Nestes termos secorrem a V. Magestade se digne em serviço (...) concederlhe a referida provizão 2.

Este compromisso da Irmandade constava de 16 capítulos que, de um modo geral, se assemelham aos das Confrarias do mesmo tipo pelo que não os vou passar a expôr em pormenor 3. De ressaltar, contudo, a particularidade, que não encontrei em qualquer dos outras, que é o de ser o primeiro a declarar, em item próprio, não existirem entraves sociais ou raciais para a entrada de irmãos 4:

Toda a pessoa que se quizer assentar por irmão nesta irmandade do Senhor Bom Jesus de Mattozinho, seja homem ou mulher, Branco, Pardo, ou Preto, Escravou ou Livre, se lhe fará assento em hum livro que haverá para esse effeito (...) 5.

Os mesmos estatutos estabelecem a data dos Jubileus, sem referir se tinham sidos concedidos por Breve Apostólico:

Serão obrigados os ditos officiaes da meza a fazer o Jubilêo da Porciuncula 6 no dia 2 de Agosto, e o de quinze dias que principiará no dia 29 de Setembro, dia de S. Miguel Arcangelo 7(...).

De acordo com as informações obtidas através da Prefeitura de Piranga, por intermédio do Arquivo Histórico Nilo Gomes, a festa anual ao Bom Jesus fixou-se em Agosto, entre os dias 1 e 15. Por documentos de pagamento a músicos e a sacerdotes para os sermões e confissões, sabe-se que se realiza já desde o século XVIII. Infelizmente não consegui obter nenhum exemplar de programa ou fotografias das cerimónias.

Um Bom Espírito Santo para todos. Um abraço da

Isabel Lago


1 Texto de pesquisa fornecido pelo IEPHA/MG e da autoria de MIRANDA, Selma Melo, Arquitectura religiosa no Vale do Piranga, in "Revista Barroco", nº12, Belo Horizonte. Imprensa Universitária, 1984/85, pp. 53-80.

2 AHU, CU-B/MG,cx. 137,doc. 64.

3 Encontram-se trancritos em FALCÃO, Edgar Cerqueira, ob.cit., pp. 34-38.

4 Relembro que no Brasil colonial existiam irmandades diferentes para brancos, pardos (mulatos), pretos e escravos.

5 AHU, CU-B/MG, códice 1532, cap.1º, fl.3. 6 Em 1216, S. Francisco de Assis conseguiu do papa Honório III indulgência plenária, semelhante à obtida nas cruzadas contra os infiéis, para todos os que visitassem a igreja da Porciúncula ou sustentassem com as suas ofertas iniciativas da Igreja. Ao longo dos séculos essa indulgência manteve-se e passou a poder-se ganhar não só naquela igreja, mas em todas as franciscanas e nas catedrais e paroquiais cada 2 de Agosto.

7 Temos aqui mais uma ligação entre o culto ao Bom Jesus de Matosinhos e o de S. Miguel.

S. Antônio de Pirapetinga (Piranga/MG)


Vista geral de Piranga

O município de Piranga está localizado num espaço montanhoso da zona da Mata. Com uma superfície de 661 Kms2, tem cerca de 17.000 habitantes, 2/3 dos quais na área rural. Fica a 169 Kms de Belo Horizonte. Actualmente tem a sua actividade económica centrada na agricultura, pecuária e indústrias de lacticínios e macarrão.

O município é composto pela sede e dois distritos: Pinheiros Altos e Santo António de Pirapetinga (antigo Arraial do Bacalhau).


Santuário do Bom Jesus de Matosinhos

O primeiro nome foi Guarapiranga (pássaro-vermelho na língua tupi), constituindo-se no mais antigo povoado da Zona da Mata. É atribuído ao taubateano João de Siqueira Afonso o primeiro lugar a explorar seu território, em 1704. Entretanto, lê-se no Código Matoso, que, em 1691, alguns sertanistas exploraram o mesmo território, edificando uma capela ou oratório com a invocação de Nossa Senhora da Conceição. Em 1694, o arraial, conforme relata Waldemar de Almeida Barbosa1, sofreu as consequências da Guerra dos Emboabas com o ataque a seus habitantes. A região de Guarapiranga foi intensamente povoada por volta dos meados do século XVIII quando inúmeras sesmarias são concedidas. Em 1841, foi criada a vila do Piranga, com instalação do município desmembrado ao de Mariana2 .

Numa altitude de 1000m, cercado por montanhas, Bacalhau ou Santo António de Pirapetinga, distrito de Piranga, contempla na parte mais alta do antigo arraial, o maior templo espiritual do Vale do Piranga: o Santuário do Senhor do Bom Jesus de Matozinhos, construído nos meados do século XVIII.

Com a descoberta das minas de Bacalhau, em 1704, o arraial passa por um grande afluxo de aventureiros e já em 1726 o povoado ergue a sua primeira capela dedicada a Nossa Senhora do Rosário (...) 3. A partir de 1740, um novo templo começa a ser erigido em invocação a S. António, o padroeiro dos mais antigos povoados da região em estilo jesuítico (...) 4.

Segundo uma lenda local, uma imagem do Senhor Morto foi descoberta no sítio onde hoje se situa a igreja. Resolveu a população guardá-la numa das igrejas então existentes a de S.António ou a do Rosário. O intento foi frustado várias vezes pois a imagem voltava sempre para o lugar onde aparecera. Ter-se-á decidido assim fazer uma nova capela para a recolher5.

Introduzida pelos portugueses na Capitania das Minas Gerais, a devoção ao Senhor Bom Jesus do Matozinhos era uma das mais ardentes na época, o que levou os seus devotos a erigirem um novo templo em estilo jesuítico, que se transformou, em 1786, através de uma bula papal, assinada pelo papa Pio VI, num santuário no qual desde a penúltima década do século XVIII promovem-se jubileus quase tão antigos como os de Congonhas e dotados dos mesmos benefícios espirituais 6 .

Em 1996, todo o conjunto arquitectónico e paisagístico do Santuário do Senhor Bom Jesus de Matozinhos de S. António de Pirapetinga, assim como o acervo móvel e integrado do templo, foi tombado 7 pelo IPHAN 8. Anteriormente havia sido recuperado pelo IEPHA/MG. O estudo histórico e descritivo, que foi elaborado para esse último trabalho de restauro, é um documento essencial para a apreciação desse templo:

O Santuário do Senhor Bom Jesus de Matozinhos é a mais tardia edificação religiosa empreendida no velho arraial .

Não se pode precisar a data da constituição da Irmandade 9 do Senhor Bom Jesus, sabendo-se, entretanto, que, em 1871, os irmãos da Mesa contrataram serviços para as obras da capela. Cabe destacar a presença do Capitão Luiz da Costa Athaíde e de sua mulher Maria Barbosa de Abreu, pais do mestre Manuel da Costa Athaíde, na constituição da Irmandade. Dois dos seus outros filhos, Domingos e Antônio, têm também vínculo documentado com a Irmandade, o primeiro atuando como pintor e dourador e o segundo, servindo de capelão na localidade durante quase toda a sua vida.

A construção do santuário se estendeu por seis décadas (1789-1840) contratando-se a execução do retábulo da capela-mor na virada dos anos setenta do século XVIII.

Desconhece-se a autoria do risco da capela, podendo talvez o mesmo ter sido executado por José Coe lho da Silva que ali trabalhou desde o início como carpinteiro de obras. Até fins do século XVIII e início do XIX, as obras se concentraram na parte arquitectônica, tendo os trabalhos de ornamentação se iniciado somente a partir da primeira metade do século XIX. Por volta de 1795, foi reformulada a altura da capela-mor, acrescentando-lhe um metro por imperfeição da obra (...).

O Santuário é composto pela igreja e por casas baixas, destinadas a abrigar os romeiros na época das festas. Possuem estas duas pequenas salas contíguas e, aos fundos, uma espécie de varanda, onde se encontra o equipamento básico para a sua utilização: fogão de lenha e mesa.

Está implantado sobre uma colina que domina todo o espaço circundante, em disposição que segue a tradição arquitetônica portuguesa das capelas de peregrinação devotadas ao Senhor Bom Jesus de Matozinhos.

Apesar da simplicidade das edificações e de seu agenciamento, o resultado do arranjo espacial é extraordinário.

A composição do frontispício, elegante e bem proporcionada, consiste em um retângulo disposto verticalmente (painel central) coroado pelo triângulo da empena, e dois painéis laterais trapezoidais correspondentes aos corredores. No painel central encontram-se a portada de grandes dimensões (...) e duas janelas à altura do coro. Nos puxados laterais, as janelas-sineiras. Na empena acha-se o óculo circular. Contribuem para a graciosidade da capela as linhas dos beirais do telhado da nave e das meias-águas laterais.

Cá estarei de volta no próximo mês. Um abraço

Isabel Lago

1 BARBOSA, Waldemar de Almeida, Dicionário Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1995. 2 www.asminasgerais.com.br. 3 VICENTE, João, Os Caminhos das Minas Gerais, in "Barne", 27 de Abril de 2001. 4 Id. 5 Informação fornecida pelo Arquivo Histórico Nilo Gomes, de Piranga. 6 Id. 7 Ver n. 154. 8 O registo de 31 de Outubro de 1996, tem o nº de inscrição 542 e está lançado no vol. 2, fl.02930. 9 Como já verificamos em casos anteriores, também aqui a construção do templo está directamente ligada à existência de uma irmandade.


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