HISTORIA REGIONAL

Trezentos (e poucos) anos ...

Ulisses Passarelli

Toda esta vastidão territorial que entrou para os compêndios geográficos com o nome de Campos das Vertentes, no centro-sul mineiro, era dominada pelos aborígenes: catauás, puris e coroados. Alargando suas velhas trilhas de caçada e migração e abrindo sobre elas e ao seu redor novas picadas, vieram as bandeiras, armadas até os dentes, de bacamartes e arcabuzes, trabucos, pistolas, facas, facões, espadas, machados, foices, adentrando o imenso e ermo sertão, numa avidez assaz doentia por preciosidades minerais e pela preação de índios.
Os bandeirantes vinham, sobretudo, de São Paulo. O posto avançado de partida era Taubaté, no vale do Rio Paraíba do Sul. De São Paulo, passavam pelo Rio Tietê (rumo à montante), ganhando um afluente do Paraíba, que era subido de barco até as cachoeiras (Cachoeira Paulista). Daí, por terra, em curta marcha, se chegava a Taubaté. Aí também vinha dar um caminho, procedente de Parati, via Serra do Mar. Por navegação marítima se atingia o Rio de Janeiro a partir de Parati. De Taubaté o caminho se direcionava ao imenso paredão da Serra da Mantiqueira, divisa natural de Minas e São Paulo, qual uma muralha. Transpunham-na por uma bocaina, a Garganta do Embaú. Subindo pelo ermo sem fim, aprofundavam no continente, cruzavam as cabeceiras do Rio Verde (afluente do Grande, no sul de Minas Gerais) até chegar ao Rio das Mortes, margem esquerda. Aí foi fundada a primeira feitoria, Ibituruna.
Rumando para o leste, ao longo do rio, subiam até um ponto de travessia acerca de 12 léguas, justamente situada nos arredores do atual Bairro de Matosinhos, local chamado mais tarde Porto Real da Passagem. Do outro lado do rio, seguia o velhíssimo caminho rumo ao vale do Rio das Velhas e mais além, ao Jequitinhonha. Foi trilhadíssimo, com as descobertas auríferas. Tal estrada primitiva era chamada “Caminho Geral do Sertão”, sertão esse dito “dos Cataguases”, “País dos Cataguases” e “Minas dos Cataguases”, primeiros nomes de nossa província.
A primeira expedição que percorreu esse itinerário foi liderada por Fernão Dias Paes, em 1674, chamada “Bandeira das Esmeraldas”, pois buscava uma mina dessas pedras, encontrada no vale do Jequitinhonha, na segunda década do século XVII, por Marcos de Azeredo Coutinho, que a descobriu vindo do litoral, acompanhando o vale do Rio Doce, rumo leste, na altura do Rio São Mateus (que corta o norte do estado do Espírito Santo).
As tribos dispostas em seus caminhos eram no geral destruídas, saqueadas, muitos e muitos amerabas eram assassinados, outros levados prisioneiros e feitos escravos; mulheres estupradas; aldeias incendiadas. A aproximação quando era pacífica destruía-os de outra forma – pela aculturação gradativa. Assim, essas expedições de paulistas vinham sempre com muitos índios em estado de servidão, acompanhando-os. Os paulistas em maioria eram mestiços, mamelucos no geral.
Desde então, outros grupos de aventureiros fizeram tais viagens, que se acentuaram com a descoberta das minas, situadas na região das atuais cidades de Sabará, Ouro Preto e Mariana.
Ao longo dos caminhos estabeleceram-se feitorias e arraiais.
Vários autores aceitam que nos últimos anos do século XVII, em data incerta, estabeleceu-se um paulista taubateano de nome Tomé Portes del-Rei nas margens do Rio das Mortes, no ponto onde se fazia sua travessia, local conhecido como Porto. Por ali passavam obrigatoriamente todos que iam e vinham das minas das cabeceiras do Rio das Velhas. Fundou uma espécie de estalagem ou feitoria, que era também fonte de abastecimento de víveres, para a longa e inóspita viagem. A história não registrou, mas foi certamente também nesse lugar, o centro de informações dos mais importantes para os viajantes sobre as condições da trilhada para diante.
Conquistada a confiança, firmado o respeito por seu nome, em 1701 foi nomeado guarda-mor, a primeira autoridade local. Como tal era responsável pela cobrança do pedágio para travessia do rio por meio de canoas, que estavam sob sua responsabilidade. Essa taxa era em parte tributada à coroa portuguesa, donde o nome do lugar ter sido Porto Real da Passagem, situado na área do atual Bairro de Matosinhos, a apenas 1 km de onde seria mais tarde construída a igreja. O Porto foi indubitavelmente o primeiro núcleo de povoação local.
Cabia ainda ao guarda-mor a tarefa de repartir as datas, isto é, lotes nos terrenos de mineração, controlando assim a exploração desordenada daquela riqueza mineral. Eis que se deduz, tal função estratégica não seria conferida a um estranho qualquer, forasteiro recém-chegado. Naturalmente precisou primeiro tornar-se confiável no lugar. Exceção feita à possibilidade ainda não registrada de já ter vindo de Taubaté com a função de guarda-mor, ou seja, nomeado e transferido para seu posto avançado de trabalho. Tomé Portes foi, portanto, o primeiro morador fixo, o primeiro comerciante e a primeira autoridade.
Em 1702, o minerador taubateano João de Siqueira Afonso, descobriu nas areias ribeirinhas sinais da presença de ouro no Ribeirão Santo Antônio, distante uma légua e pouco a leste do Porto, do outro lado do rio. A notícia espalhou-se rapidamente e para lá acorreram muitos, na esperança de enriquecer. Logo surgiu um arraial e coube a Tomé Portes como autoridade, fundá-lo e dividir as datas. Foi chamado Arraial de Santo Antônio, origem da atual cidade de Tiradentes.
Fica claro então a diferenciação entre fundador (autoridade) e descobridor (garimpeiro), muitas vezes confundida e levando equívocos históricos.
Pouco depois, Tomé Portes foi assassinado por alguns escravos. Seus demais escravos vingaram-lhe a morte, matando os assassinos. Assume a guarda-moria o seu genro, Antônio Garcia da Cunha. A viúva retorna para Taubaté, vindo a falecer em 1728.
No ano de 1703, começaram a edificar no Porto Real da Passagem uma igreja, que se consagraria a Nossa Senhora do Pilar e serviria de matriz, mas ficou inacabada.
Em 1704 é a vez de dois descobertos auríferos: um no Ribeirão São Francisco Xavier (a cerca de uma légua ou pouco mais a oeste do Porto) e outro na vertente de um morro, na encosta de uma serra, naquele que mais tarde seria chamado Alto das Mercês. Descobriram respectivamente, o paulista Lourenço da Costa e o português Manuel João de Barcelos. O primeiro era negro forro e escrivão de datas do referido Antônio Garcia da Cunha. Foi o fundador ou um dos fundadores da Irmandade do Rosário (1708), nosso mais antigo sodalício religioso e um dos mais velhos de Minas. Também rapidamente se reuniram mineradores. Ali se fundou um terceiro povoamento, o Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar. Dito “novo” em confrontação ao de Santo Antônio, que ficou desde então cognominado “Arraial Velho”.
Com esses descobertos, um grande fluxo de aventureiros era visto em deslocamento para a região, no sonho de enriquecer. Os três arraiais desse eldorado cresceram rapidamente: o Porto, o Velho e o Novo.
Nesse novo arraial, logo erigiram uma ermida rústica de pau-a-pique, coberta de sapé, consagrada à Virgem do Pilar, cuja imagem primitiva, até hoje existe, como se pode ver na sua atual catedral basílica. A dita ermida, feita de improviso, substituiu o projeto daquela outra de 1703, largada no Porto.
Os paulistas dominavam as maiores e melhores minas, com uma certa violência. Os não-paulistas, coletivamente chamados Emboabas (portugueses, baianos, fluminenses, etc.), também defendendo seu quinhão, logo entraram em atrito, resultando numa desavença armada, chamada “Guerra dos Emboabas”, entre os anos de 1707 e 1709.
Os Emboabas (termo pejorativo que significa cães) estavam arranchados junto às minas. Os paulistas ergueram moradas mais distantes.
Durante um dos episódios tensos da contenda, a capelinha do Alto das Mercês foi queimada. Finalizada a refrega, afastados os paulistas, nova capela foi erguida, com a mesma devoção, dessa vez, ao que parece, onde era o acampamento dos paulistas, que levaram a pior naquela peleja. Presumivelmente ficava no Bonfim. Há quem afirme que esta outra capela já existia mesmo antes da guerra, mas parece pouco provável.
Após a guerra foi edificada uma fortificação pentagonal no Porto Real da Passagem, aproveitando-se da igreja inacabada, com o temor de qualquer recidiva e naturalmente melhor defesa contra o tráfico mineral.
O Arraial Novo de N.S. do Pilar foi elevado a vila em 1713, com o nome de São João del-Rei, por ato de Dom Brás Baltasar da Silveira. O nome escolhido homenageava o Rei Dom João V, de Portugal. É estabelecida uma Casa da Câmara, onde se reúne toda a autoridade local, executiva, legislativa e judiciária. Um pelourinho é chantado no largo, onde publicamente se proclamavam editais e castigos. No ano seguinte uma ordem obriga os moradores do Porto a se mudarem para essa nova vila. O Porto cai então no abandono.
A força polarizadora de São João del-Rei se desenha célere: feita cabeça de uma vasta comarca, batizada pelo Rio das Mortes, sua jurisdição abarcava boa parte do quinhão dos Campos das Vertentes e uma imensidão territorial rumo oeste, sudoeste e sul. A vila era como uma capital jurídica, civilizatória, comercial, cultural e religiosa de praticamente 1/3 do atual estado das Gerais.
O século XVIII prossegue na febre do ouro. Tudo gira em torno do minério nobilíssimo. Novas jazidas são descobertas, mais caminhos abertos e ao seu comprimento surgem fazendas e tantas povoações. Os índios rareando; os negros aumentando, trazidos em sucessivas levas para a escravidão. Só na Mina do Barro Vermelho (atual Rua Cel. Tamarindo) foram cerca de mil, ocupados na dura servidão.
Predominaram os africanos do grande grupo banto (angolas, congos, moçambiques, cassanjes, rebolos, camundás ou cabundás, benguelas, etc.), embora tenham também vindo sudaneses (destacando os negros minas) e malês (muçulmanos), estes em menor número. 
            A mistura racial foi óbvia, a exemplo do restante do país e foi na mestiçagem que se fixaram muitas de nossas tradições.
O último quartel desse século sentiu fortemente a decadência da exploração aurífera. Muita gente nossa debandou colonizando outras áreas da então província, levando consigo nossos elementos culturais. Muitas vilas e arraiais desse período se estagnaram. São João del-Rei porém enveredou pela pecuária e agricultura de subsistência, mas sobretudo no comércio. Foi nessa época que se ergueu num platô, a apenas um quilômetro do velho Porto, uma capela, sob a invocação do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, devoção de procedência portuguesa. Ali surgiu animada festa em Pentecostes, já numa economia urbana, embora guardasse em si, muitos elementos rurais.
A centúria seguinte, esgotado o ouro, foi a vez do comércio ganhar vigor. São João tornou-se grande entreposto comercial da rota Rio de Janeiro – Sertão (assim chamado o centro-oeste), além de outras regiões mais longínquas (Triângulo Mineiro, chamado nessa época de “Sertão da Farinha Podre”, e o atual noroeste).
Em 1838 a vila de São João del-Rei foi elevada à cidade. Por esse tempo Matosinhos firmou-se como um arraial pitoresco, aprazível, bucólico, cheio de chácaras grandiosas, com pomares afamados. Muitos procuravam esse lugar para cuidar da saúde, graças a sua tranquilidade e pureza ambiental.
A cidade crescia e se firmava nos valores do catolicismo, ainda barroco e colonialista. A imprensa chega com jornais diversos, o mais ancestral deles, o Astro de Minas, que deixou ao longo dos anos muitos rebentos: Arauto de Minas, O S.João d’El-Rey, A Reforma, O Combate, A Nota, etc...
Terminando o século XIX, vieram a estrada de ferro e as primeiras indústrias, marco evolutivo que caracterizaria o século XX até seus meados, muito embora o comércio prosseguisse.
O fim da escravidão tenebrosa nos trouxe o italiano, de tantas e tantas famílias, estabelecidas em colônias nas vargens beira-rio: Marçal, Briguenthi, Bengo, Recondengo, José Teodoro, Felizardo e ainda, o Fé, mais retirado. Dedicaram-se sobretudo à agricultura. A seguir diversos italianos se estabelecem também na cidade em várias atividades.
Tão promissora esta terra que se idealizou convertê-la em capital do estado, e por pouco não o fomos.
Depois chegaram os migrantes libaneses, sírios, turcos, árabes, entregando-se sobretudo ao comércio.
Na segunda metade do século XX, ou melhor dizendo, no seu último quartel, a indústria perdeu vigor, o crescimento desacelerou.
O século XXI chegou com a bússola apontando para a atividade turística, que não se desenvolverá por milagre, mas só com muito trabalho em seu favor.
Nosso renome na história, na cultura, no ensino, no patrimônio, na música, nas artes e letras se firmou como uma referência regional, polarizadora, e em muitos aspectos a nível estadual e mesmo nacional. Muito nos honra nossa UFSJ (Universidade Federal de São João del-Rei), que recentemente apresentou uma grande expansão. Uma unidade do exército brasileiro, o 11º B.I., orgulha este município em muitos aspectos. Treinando escaladas nas vertentes serranas tem uma história gloriosa e uma banda de música notável. A natureza generosa deixou-nos um legado magnífico em derredor. Os viajantes e cronistas estrangeiros encantaram-se em sua passagem por nossa terra, deixando consignado em seus relatórios de viagem notas importantíssimas para o estudo da história e da vida social da tricentenária São João del-Rei. Cognomes sugestivos foram atribuídos a esta cidade, ressaltando os nossos valores: “Cidade onde os Sinos Falam”, “São João dos Queijos”, Terra da Música”, “Princesa do Oeste” e outros. Nossos distritos escondem joias culturais como uma jazida inexplorada. Pelos largos, nas festas de capelas, nas comunidades periféricas o rico folclore resplandece e clama olhares. Aqui floresceram grandes nomes. Vultos perenes marcaram esta terra desde recuadas datas: desde o patrono pioneiro desta urbe, Tomé Portes, passando pelo herói Tiradentes, pelos mestres compositores, artistas sacros que talharam cantarias e altares, grandes regentes, imortais das letras, escritores geniais como Lincoln de Souza ...
São João del-Rei acena de novo ao crescimento: as lombadas de campo, outrora pastagens, se enchem de casas; novos bairros surgem, a cidade se reconfigura, procura futuro, estende seu horizonte e procura um norte. Pergunta a si mesma: e agora? Como será? O que virá...

 


Maria-fumaça passando pela localidade do Sutil. Foto: Ulisses Passarelli, 2000.


- Texto extraído de meu blog – Matosinhos: história & festas (festadodivinosjdr.blogspot.com.br), onde estão todas as fontes bibliográficas pesquisadas. Foi adaptado, ampliado e renomeado para esta publicação. Título original: Um passeio por Matosinhos: esboço histórico básico.

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